26.12.04

mais um.

o meu avô dá-me abraços apertados. costumo ficar demorada dentro deles, como se pudesse ser para sempre se fechar os olhos, como se dentro deles encontrassemos os dois aquilo que procuramos.
Estava a escrever um post e antes de o pôr no ar, andei por aí a ler os vizinhos: nomeadamente as coisas boas da té. Encontrei tantas parecenças em algumas coisas que dicidi não por o meu no ar: seria repetir palavras da mesma familia, reescreve-las, com a falta que não queria de algumas partes. Modifiquei-o.

A té chamou avó leoa à avó dela.
E se me perguntassem como é que foi este Natal para mim, foi a falta da minha "avó leoa". Não foi mais um Natal, como queríamos, foi diferente. Mil vezes a falta da minha avó. O silêncio da falta. Este Natal foi feito de nós a tentarmos fazê-lo igual ao que já foi. Teve alguns sons de sempre, alguns cheiros de sempre, perdidos entre bocadinhos de nós. O bacalhau de sempre. Os doces que fizemos e comprámos com vontade que ficassem iguais aos da avó. A minha avó fazia-os como ninguém. Eu sei. nunca gostei muito do sabor dos doces de Natal, mas sei que os melhores eram os da avó. Lembro-me da avó fazer doces especiais para os netos que gostavam pouco dos doces do Natal. Lembrava-se sempre de todos e dos gostos esquesitos de todos, adaptava as tradições a serem novas só para nós. Neste Natal, os sons ainda foram quentes, como dantes: a lenha a queimar contra a chuva fria la de fora. a casa embalou-se com a Norah Jones: do principio ao fim. Quando fecho os olhos, consigo ver o som do Natal e o cheiro dos reflexos da lareira nas coisas.
É engraçado porque também fiquei sentada no sofá, a ver passar as vidas com pressa. Com o meu avô do lado esquerdo, a tentar fazer-me lolós e a rir-se. (na nossa famlila, temos quase todos e sempre esta coisa dos lólós e chatear imenso os outros até as piadas estarem gastas. Faz-me lembrar algumas das coisas dos gatos- fedorentos que nos encheram a tarde do Natal de risos. ) E eu a rir-me tanto por dentro por estar ali com ele inteira e sermos só os dois. Os dois e o mundo com pressa. O meu avô a falar-me da minha avó e eu a ficar calada e a querer chorar saudades. Eu a tentar dizer palavras e elas a não sairem, a parecerem ridiculas demais para sairem. Eu a ficar calada e o meu avô a chorar. Eu a fazer festinhas ao meu avô e as lagrimas a serem fortes. As lagrimas, fortes fortes. O nosso silêncio. Eu a dizer: avô, não vamos pensar na falta. Acabamos sempre a chorar e as palavras a não existirem. vamos desligar-nos ca de dentro e ver o mundo lá fora de nós, temos sempre razões para rir: alguém que torpeça, alguém que diz disparates, alguém a cantar desafinado, alguém com vontade de abrir presentes, alguém com pressa sem razão. o meu tio e as suas piadas, sempre. o meu irmão a dar presentes à minha mãe, que são para ele. os gatos fedorentos ou os programas de "humor" à portuguesa para os mais idosos.... alguém com vontade de rir na ternura, como nós.
Não vou falar muito da parte dos presentes, não interessa. mesmo que os meus pais tenham sido uns queridos e que eu fique sem palavras só de pensar no esforço que fazem para me dar aquilo que o meu curso infelizmente quase me obriga a precisar.
O importante neste Natal, mais um Natal, foi a parte de ficar, ficar, demorar com a familia. dar abraços e ficar, aproveitar tudo e todos e espremer bem as emoções. Rirmo-nos de nós e das nossas coisas tão nossas. Desligar o telemovel por dias. desligarmo-nos por dias que foram curtos em nós.

3 comentários:

Joao disse...

Os vazios são o mais complicado. Aqueles momentos que sempre fizemos com alguém que já não pode estar connosco. É nesses momentos que a ausência nos atinge com toda a sua força, em que somos forçados a encarar a mudança.

Gostava de te dizer que passa. Mas nunca passa totalmente. E, pensando bem, talvez seja bom que não passe totalmente. E leva tempo. Leva o tempo desses momentos serem preenchidos com novos hábitos, novos rituais, novas pessoas, que preenchem parte do vazio nas recordações e na nossa forma de materializar o momento. Até que a pontada aguda da perda desaparece para deixar apenas o agridoce da saudade. Por enquanto a dor ainda fere. Deixa o teu avô chorar, ele precisa. Deixa-te chorar se precisares.

Tu és tão forte. Tens noção disso? Sentes todas as dores do mundo a dilacerarem-te como se fossem tuas e guardas as tuas para ti, e no entanto acho que não há nada que te consiga quebrar, nada suficientemente cruel neste mundo para fazer com que deixes de te dar aos outros de coração aberto. Mas não precisas nem podes carregar a dor dos outros.

Fora isso, não há muito que te possa dizer. Vejo que sabes tudo o que eu te poderia explicar nos momentos que descreves com o teu avô. Dos momentos preciosos, das cores que ficam, das pessoas que merecem que sigamos em frente, e acima de tudo de nós próprios merecermos. E de nem sequer termos que o merecer, porque a vida é assim. Agride-nos sem justificação e dá-nos momentos preciosos de prenda sem pretexto. E temos de saber resistir a uns e aproveitar os outros. Um beijo grande.

disse...

não te cheguei a contar uma parte bonita deste natal. talvez a mais bonita.

a minha mãe contou-me há tempos que havia uma canção de que a minha avó gostava muito. percebi esse gostar, também sou feita de canções. fui à procura. tem um nome estranho, vem de um lugar, não sei de onde, e fi-la existir num cd. no dia de natal puxei a avó para a aparelhagem. disse que aquela prenda tinha que ser aberta ali. não leu as letras escritas, as letras a dizer o nome da canção. quis que o encontro se desse pelos primeiros acordes e carreguei no play. todo o seu sorriso se encheu com os mil sorrisos dela, talvez o mesmo que soltou há muitos muitos anos. esta canção era assobiada pelo meu avô. era do tempo de namoro dos dois, quando o beijinho se trocava atrás do jornal e a corte era prolongada e com poucos frutos. o meu avô, Marcial, que gostava de whisky e tinha o som das pedras de gelo a tilintar nos copos, o meu avô que dormia a sesta coom a TSF aos berros, o meu avô que me chamava "bichana", que me apertava, que mergulhava ao mesmo tempo comigo para a piscina do clube mimosa, que fazia a marginal a pé de manhã, que era médico, que era pai da minha mãe e dos meus tios, que é meu avô, o meu avô assobiava esta canção quando dançavam os dois. claro que a minha vaó dançou por dentro com a canção, e claro que essa dança, transformada em gotas pequeninas, lhe encheu os olhos e o nosso abraço foi maior. com muita saudade, tanta, mas maior. é que às tantas há uma maneira de perder que se torna uma maneira de ganhar. e na vida,embora tudo se transforme e mude, se aproxime e afaste, há uma presença que vale tudo.

pipa disse...

é a banda sonora da vida a tocar fundo...