12.3.05

alma


fotografia de Antonio


"O derradeiro mistério somos nós
próprios. Depois de termos pesado o
Sol e medido os passos da Lua e
delineado minuciosamente os
sete céus, estrela a estrela, restamos
ainda nós próprios. Quem poderá
calcular a órbita da sua própria alma?"

Óscar Wilde

conheceram-se por acaso.


antes de se conhecerem: conheceram-se por acaso. eles escreviam-se em cartas imaginárias, em vidas imaginárias, e conheceram-se por acaso. não eram os unicos, porque a vida sempre fez destas danças trocadas ao vento por quem sente, sentiam-se sozinhos nos dias. havia momentos em que se sabiam existir um ao outro. era como se a existência um do outro fosse a matéria que os mantinha vivos e sonhadores. era como se o tempo lhes corresse nas veias apressado e eles corressem atrás dele, incapazes de lhe tocar. conheceram-se por acaso, antes de se conhecerem. tocavam-se nas entrelhinhas das cartas imaginárias que escreviam. quando se escreviam, era desde sempre. às vezes, sentiam-se um ao outro na pele nervosa que doía de vontade. quando iam dormir, a solidão invadia-os em cacos e pozinhos mágicos de sono, sonhavam-se. (antes de se conhecerem.) e a vida era mais real ali. fácil fácil como a vontade fácil de serem exactos quem eram. havia dias em que as horas não existiam, os dias não existiam: corriam as horas pelas horas na vontade do sono que trazia o sonho e a vontade de se tocarem, de olhos fechados. sentiam-se loucos. e a loucura era a melhor certeza na obliquidade serena dos dias, esperavam. quando se sonhavam, conheciam o sorriso sincero da espontaneidade, sabiam existir-se em vidas distintas, sentiam-se. eles tinham as certezas de um tempo para sempre neles. faziam planos que eram os mesmos e riam-se. tinham formas de ser parecidas, tinham os mesmos gestos e os mesmos jeitos, o riso não, completavam-se como se encaixavam perfeitos nos sonos sonhos sonhados um do outro. antes de se conhecerem, ja se conheciam em danças lentas e leves em que se tornavam um só corpo, moldado, um. agora, quando é à tarde, fecho os olhos e ainda te vejo. diziam-se, quando os dias eram maiores, quando a sede era a de sempre. adoravam-se nos imaginários sedutores e morriam de vontades. conheceram-se por acaso: cruzaram-se, na viagem de volta para a casa e para o sono e para a vida feliz- verdadeira- que construiram real. olharam-se e reconheceram-se de si a si mesmos, era a vida a trocar-lhes as voltas, no caminho certo certo dos passos certos, das linhas certas como as entrelinhas que eram deles, certas. olharam-se. enquanto seguiam para lados opostos, na mesma vontade, no mesmo sonho, na mesma vida. olharam-se. sentiram-se. comoveram-se. viveram uma vida nos olhos um do outro. amavam-se. como hoje. seguiam caminhos opostos nos passos inconscientes. houve um momento em que se olharam eternamente. pararam. e era como se o vazio de uma vida se enchesse de uma matéria qualquer, sentiram-se um ao outro, para sempre.