Seguimos sem medo. No fundo no fundo, estavamos cheios cheiinhos dele, mas insistíamos em dizer que não, que a vida é boa :não há que ter medo. Havia uma estrada escura e pressa. Havia pressa que ainda não era pressa de chegar porque ainda faltava uma pessoa connosco e essa pessoa era importante no medo onde nos dirigiamos. seguiamos sem medo. já iamos cheios e já tínhamos pressa de chegar. É bom quando nos dirigimos com pressa ao medo que queremos viver. A pessoa importante fazia falta no sitio onde éramos esperados. Levar uma pessoa connosco que é importante e que faz falta aos outros, traz-nos alguma importância, impessoal. Rasgámos a estrada, como se rasga uma estrada com pressa, as imagens de todos os dias a serem mais rápiadas agora, imagens a passar rápidas, a passar. O som a passar rápido. Como o flecha. Havia uma pessoa importante connosco. Isso tirava-nos uma parte do medo, multiplicava outra. No fundo, nunca tive medo. sempre soube que uma parte de mim era controlada por mim mesma. sempre soube que perto dessa parte de mim, havia espaço para onde me dirigia, à espera de ser preenchido, tinha de o ser e começava agora. nunca percebemos bem a razão do medo existir. chegámos e deixou de ser importante termos chegado atrasados. Deixámos de existir por bocadinhos.
Fomos onde o medo existia, corajosos. E afinal o espaço era já nosso, não o invadíamos como não dizíamos e sentíamos. Passámos a ser imagem de outras terras, de outras gentes. Ouvimos intactos memórias de outros, memórias que eram também nossas, dos sonhos mais sonhos. E os outros deixaram de ser outros para serem pessoas perto e perto. A pessoa importante, largou a importância à porta e lá dentro, fomos os mesmos que os outros. Lá dentro, dentro de uma sala que é sempre uma sala de aulas e não era ali. Era agora uma sala no meio de moçambique. Uma sala com cheiro a terra seca. as janelas, essas fazíam-nos lembrar as janelas de campos dos nossos, cheias da terra virgem onde o homem não tocou. E nós. Nós dentro das histórias que vêm dentro dos outros e ficam dentro bem dentro de nós, onde já existiam sem existirem. Quem falava, falava só com as emoções. não faltou nada. não, não faltou nada. Dentro dos nossos sonhos, havia lugar para viver assim, um ano assim. (O que mais me motiva são as gentes, os olhares de gentes sem nada e com tudo, gentes e gentes. sorrisos a serem sorrisos sinceros e podermos fazer melhor a alguem do que a nós mesmos.). Gostei de fechar os olhos e ficar a ouvir o testemunho. Gostei de partir daquela sala e mesmo dentro dela, ficar longe. so a ouvir existir. Já não havia medo, porque o medo já não tinha espaço para ser grande. Um dia, se chegar a algum lugar que não existe e for só eu sem coisas, e se chegar a torna-lo meu por instantes, vou querer dar tudo porque nesse dia não vou ter nada e sei que nesse dia vou ter um dia feliz. Ouvia dizerem que a vida lá é cheia de tudo o que não é material, ouvia contarem estorias de quando as pessoas não falam a mesma lingua e não precisam falar: trocam ervilhas por bolachas a sorrirem e isso já é a amizade que existe a existir. Ouvia o Natal no verão quente de chão quente e pessoas descalças, ouvia a vontade de enfeitar a vida como nas memórias que temos fundo de sempre, de um Natal dos nossos. Ouvia segredos de quem vive a dois, num amor que rebenta pelas costuras. cheios de cumplicidades a dois naquelas historias de terras perdidas. Ouvia falar de crianças caladas, obdiêntes, com medo do que vinha de gentes novas e tão diferentes. de crianças que sabiam o que é importante na vida porque não conheciam o outro lado. e da felicidade de umas pipocas existirer na vida delas. Sentía que ia um bocadinho mais além daquelas palavras. Acho que viajei por uns instantes, ninguém reparou que não estive la. Sentía-nos a todos iguais e isso levou o medo que existia. Sentía-nos de olhos fechados a ouvir a vida a ser, o que tinha sido, de novo. Comovidos. Senti que gostava de também eu escrever diários de dias assim. Ouvia estórias que queriam à força levar-me com elas, queriam à força existir dentro de mim. eram as estorias dos outros. E talvez seja esse o maior medo: sentir-nos capazes de também nós fazermos historias da mesma maneira que se fez ali, sem pressa. historias de vida. como estas que nos tocam assim, sem pedir licença. Não descobrimos a razão do medo existir. A pressa de chegar fez algum sentido no fim, soubessemos nós o quanto é fácil voar para estes lugares antes, e tínhamos rasgado o medo com mais pressa ainda. A pessoa importante sabía-o bem. Sabe bem o quanto é bom partilharmo-nos desta maneira. Sempre soube e eu nunca tinha reparado. Talvez por isso a sua facilidade em nos convencer do obvio, que é obvio: venham, vão ver que vai ser bom. Tens o espirito asul. Nao sei o que é o espirito asul, não sabíamos. se for parecido com um bocadinho do que senti para onde fui naquela sala, quero ir mais vezes, sem medos. e aprender o caminho do outro lado, o lado que me vai fazer contar as historias um dia. A estrada fez-se rápida onde já não havia pressa de chegar. Acho que fomos invadidos por uma pressa diferente: de viver. às vezes são precisos momentos destes, para voltar a ter a pressa que nos faz na nossa história, nestes lugares.
fotografia margarida delgado moçambique