30.1.05

os dias iguais

a D. Maria espera impaciente o tempo que não chega. tem os dias contados e sabe de cor as dores que a perseguem. Acordou cedo, fez questão de acordar os colegas todos do lar, com sorrisos e boa disposição. a D. Maria nunca chora: é a pessoa mais alegre do lar. só chora baixinho e nunca chora, porque não. porque é forte. fui visita-la. a D.Maria sabe que pertence àquele lar como a vida lhe pertenceu inteira. estava quieta, sentei-me por ali onde a luz pousava devagar. a D. Maria falou-me dos sonhos que ainda tinha e chorou, como se nenhum pudesse acontecer no tempo que hoje lhe foge pelas mãos. chorei com ela. pensei: a vida é tão fugaz. quanta ternura desperdiçada. nunca noutra vida teremos tempo para viver o que falta no nosso tempo da nossa vida que é hoje. pensei: a D. Maria pensa que a vida hoje são dias de tempo que não passa e voa sem mudar as horas que lhe fazem os dias iguais. A D.Maria sabe tão melhor que eu como se faz para acreditar que hoje é que conta. que não há sonhos que não possam existir em tempo de nós. eu olhei-a com vontade de a abraçar e a levar de mãos dadas a todos os sonhos que ainda lhe são pequeninos de vida. Pensei: se a levar a todos os sonhos a vida acaba. Nenhum olhar lhe fará melhor do que aquele que lhe diga um dia, um dia... um dia D.Maria, um dia, tenha fé!.. . Disse-lhe em silêncio o quanto gosto dela e de a ver fazer os dias dos outros menos iguais aos dias que são dias tão grandes como os que lhe enchem os dias. a D.Maria acordou sorridente, os outros quietos. quietos. acordaram para as batalhas dos dias iguais. uns, dizem coisas que nunca percebo, e isso doi. às vezes olham com caras estranhas e isso doi. não me faz so lembrar os dias iguais dali, mas também os dias iguais que a D.Fernanda teve com gente maluca que nunca chegou a perceber. pois é, tive momentos com a D.Maria em que me desliguei das suas historias e saudades e vida e corri lembranças, a minha memoria memoria. mas o medo não tinha razao de ser: não há dias iguais, nem histórias iguais, nem cheiros iguais em pessoas iguais. tudo é parecido, efémero, fugaz, igual, corrido, antigo. a D.Maria diz-me para não me preocupar nem me assustar com quem me olha estranho dono de nenhum olhar, é normal. é como se a vida lhe fosse um milagre contínuo, e a ninguém devesse aquilo em que acreita. Eu contra o mundo. Hoje senti saudades e apeteceu-me escrever-lhes. gratidão talvez? Como se um dia que fosse hoje lhes pudesse dar os sonhos que lhes fazem os dias acordarem doces devagar iguais iguais.